De uma forma bem generalizada a dança poderia ser descrita como movimentos consoantes a música num ato de total harmonia onde se vê claramente que os impulsos do corpo condizem com os ciclos musicais de cada estilo.
Estudioso e questionador que sou, tenho recebido alguns alunos ao longo destes quase 40 anos dedicado especificamente à arte flamenca e algumas danças afins e vejo que todos confundem suas inspirações ditas "espirituais" com a forma da dança em si, alegam receberem alguma influência astral ou ainda usam o termo ancestral (espiritual ou não) pra justificarem aquilo que fazem; e pode piorar quando se defendem usando a espiritualidade como resposta as suas manifestações sem qualquer nexo com aquilo que se escuta ou supostamente imagina ser.
Muitas vezes ouvi no meio artístico que "a dança está de um lado totalmente oposto ao que pede a música". Fato! Quando desconhecia as raízes daquela arte que mexe comigo eu muito me impressionava com estas manifestações. Ao me aprofundar nos estudos fui entendo esse divisor de algo mais respeitoso com a dança e estes movimentos justificados por essa espiritualidade desconexa com a própria música em si.
Não é difícil ver que os registros físicos que a dança tinha, e tem até hoje, parte de ritualísticas religiosas ou sacerdotais ou de celebrações coletivas. Mesmo assim seus movimentos são consoantes as métricas de cada estilo musical. Até seus seguidores, sejam de qual ritualística forem, se embalam por essa energia provida das marcações da música. Não é só um estado de torpor para se movimentarem. Basta ver os indígenas! Independentes de estarem manifestados, suas danças seguem marcações ditadas pelos músicos. Eu perderia páginas escrevendo e citando danças de todas as partes do mundo que se manifestam assim, regradas literalmente pela música.
A palavra espiritualidade se relaciona literalmente com uma busca da essência interior tentando se entender no universo em sua composição astral e física. E pode sim estar conectada a alguma filosofia espiritualista ou mesmo religiosa onde cada caminho busca entender e justificar a existência da vida de tudo que vem da natureza onde a ciência convencional não consegue justificar. Também daria páginas de reflexões e o que é pior, pode-se ter julgamentos por não aceitar aquela forma conforme se supõe estar certa ou errada segundo conceito pessoal de cada um. Já falei em outros artigos aqui sobre a questão de se fazer um bom indivíduo na vida independentemente do caminho escolhido.
Por causa das origens miscigenadas do flamenco, a arte que escolhi, acabei me interessando por essas outras raízes haja vista que sua existência se deve a essa grande mistura e filtragem destas culturas. Para quem estuda o flamenco sabe que suas raízes possuem fortes inspirações principalmente de mouros, espanhóis do sul de uma forma mais intensa, de africanos, judeus e até mesmo da etnia cigana que já é uma aglutinadora de culturas e se reinventa por cada país que passa dando origem a novas formas de canto, música e dança. Aliás há um ledo engano de que esse povo dança sem compromisso e se deixa levar pela música sem conhecê-la antes. Os passos são sim aprendidos e aplicados na música entendendo, ao menos, a harmonia com os ciclos musicais. Então o flamenco é um grande caldeirão de culturas como aquele prato de comida que fazemos e melhoramos agregando algo pessoal sem alterar sua característica principal.
Da dança encontraremos duas únicas formas que regem o mundo todo. A acadêmica, que dita diretrizes e formas regulares onde a linguagem é única para todos, e a Popular, que tem suas regras ditadas pela manifestação do povo em si. E ainda assim ambas seguem regras ditadas pela música! Do ramo popular podemos ainda dar um espaço para as religiosas que, mesmo sob influência litúrgica, seguem os ditames da música de sua comunidade.
"A dança acadêmica e a dança popular são duas categorias distintas dentro do universo da dança, com características e objetivos diferentes. A dança acadêmica, também chamada de erudita ou clássica, geralmente envolve técnicas específicas, treinamento formal e é frequentemente associada a apresentações em teatros e escolas de dança. Já a dança popular engloba as manifestações culturais tradicionais de diferentes povos e regiões, podendo ser praticada em contextos sociais e familiares, e muitas vezes transmitida oralmente de geração em geração.
Dança estilizada refere-se a uma composição vinculada a determinada dança, porém dissociada dos passos e da coreografia. Esse tipo de obra se inspira em danças populares, porém não é mais, propriamente, uma expressão completamente popular delas. Acaba ficando decorativa e recheada de excessos ou carências da forma original e, por essa razão, nada tem a ver com a representatividade daquele povo em questão."
Fonte: Google
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dança popular brasileira |
Aí questiono profissionais e amadores que não gostam de estudar, de se aprofundarem nos conhecimentos e depois se manifestam artisticamente sem nenhum compromisso ou responsabilidade cultural quando fazem seus trabalhos e ensinam a outros a serem iguais a si. As danças de matriz étnica são as que mais sofrem essas interferências e vemos em toda parte do país a livre estilização, o que não é ruim por se tratar de uma forma da expressão, e a determinação que essas pessoas apresentam, a maioria consciente, com a falta de compromisso e responsabilidade advinda dessa pseudo liberdade de expressão.
Alguns amigos sempre disseram que quanto mais conhecimento se adquire, mais o filtro das escolhas é exigente e mais nos afastamos de gente que simplesmente não quer esse compromisso, essa responsabilidade e respeito cultural com as formas peculiares de cada povo que nem é o seu. A exemplo cito quando vemos e criticamos pessoas de outras culturas que dançam e "ensinam" o samba totalmente fora de um contexto e fora do ritmo.
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dança estilizada |
Dança-se como quer, como sua energia grita e isso não tem nada de errado. Mas ao se mostrar como profissional e ainda ensinar essa forma existe sim uma responsabilidade implícita pelo respeito a dança escolhida e ao aprendiz que quer se inserir nessa cultura.
Então para quê servem pra essas pessoas as escolas de danças étnicas que trazem a fundo as bases sólidas das danças que ensinam por terem estudado? Dá pra fazer um paralelo com a necessidade de se formar em alguma profissão... bem fácil perguntar e responder se você faria uma cirurgia com um especializado ou com aquele que nunca conheceu nenhuma técnica e põe em risco sua vida.
Sonia Castriotto foi uma das primeiras professoras que tive no flamenco e que sempre enfatizou que quanto mais técnicas diversas de dança eu dominar, mais liberdade eu teria para expressar minha arte, no caso o flamenco. Então segui atrás de outras linhas flamencas, pesquisei um pouco a cultura judaica pra entender algumas danças, adentrei até num curso de danças indianas onde aprendi um pouco de Odissi e principalmente do Katak, observei por muito tempo a dança árabe, conheci as formas instintivas de danças ditas ciganas e realmente de danças de alguns ciganos reais e também fui pesquisar por algum tempo a dança contemporânea e o ballet para responder a minha natural curiosidade daquilo que falei sobre as formas erudita e popular da dança.
dança erudita ou acadêmica |
Tenho artigo aqui falando das formas de danças que se misturam com religiosidade e aponto uma em específico onde quase a totalidade de seus instrutores acabam se rendendo a uma forma espiritual de culto para afirmar a existência de seus conhecimentos daquela específica dança supostamente ensinada por algum mentor espiritual. Ok, sendo assim a veracidade deste mentor, sendo mesmo da etnia ou com convivências com tal povo, saberia intuir as danças exatamente como eram ou são; o que não vi até hoje ainda nos inúmeros caminhos que percorri. Ainda ponho em cheque, já debatido em alguns lugares, que a religião nunca foi um estilo de dança acadêmica, mas sim um tema para diversos estilos de dança onde essa temática é explorada com estudos para dar mais profundidade as suas necessidades, ficando estilizadas para palco ou para plateia ao ar livre sem o compromisso litúrgico do culto.
Em particular, a dança para mim já é um puro manifesto da existência e se expressa nas mais diferentes linguagens seguindo os ditames que as distingue. Então se aprofundar naquela que o satisfaz nada mais é do que adquirir, primeiro, mais conhecimento histórico de um povo e, segundo, dominar as estruturas da dança e das músicas que a compõe. E de fato essa liberdade tão almejada para dançar livremente é alcançada sem nenhuma esteriotipagem da cultura que escolheu.
Dançar a dança de um povo é conhecer sua história, seus costumes, seus trajes, comidas, linguagem da dança e até mesmo sua religiosidade mas sem se tornar um deles porque não existe conversão para isso e, acima de tudo, respeitá-la como ela é. Mas ganhará um certo prestígio entre os tutores da cultura caso o faça com aquela proximidade que os identifica e se reconhecem. Não é estudar para ter este reconhecimento! Este vem sozinho, do nada, bem espontâneo e quando menos se espera. Somente nas danças acadêmicas e eruditas existe formação que é um reconhecimento, como o nome diz, formal para poder executá-la com respeito e ensiná-la como tal.
Dançar formas populares tem sim a liberdade, mas jamais terá a admiração de seus tutores salvo dos ignorantes dessas normas de conduta que muitos dizem delimitar suas expressões espiritualizadas e ditas como a livre "expressão artística".
E pergunto então o por quê destas pessoas necessitarem de algum curso se não seria apenas pra pegar alguns passos e saber um pouquinho dos trajes já que usam da sua inspiração espiritual pra justificarem suas danças? Não é a sua espiritualidade que sabe tudo o que te inspira? Fica a pergunta outra vez se está coerente com o povo vivo e real que manifesta sua cultura e se realmente precisa cursar alguma dança.
Duro isso, não é mesmo? Eu mesmo recebia muitas críticas e ironias de seus tutores quando fazia minha dança crente que apenas minha emoção por ela era suficiente para me expressar... mas respeitarei o tempo de cada uma destas pessoas quando querem se amostrar e, de alguma forma, serem reconhecidas; seja por seu digno estudo ou apenas para alimentarem seus egos haja vista que a dança também tem muito de egolatria e vaidade em todos os segmentos.
Fica aqui uma reflexão de um cara que iniciou na dança por inspiração, por alguma atração e ligação com a dança (flamenca) que não justifica minha ancestralidade de portugueses, indígenas, negros e italianos. Deixarei que a espiritualidade me explique isso quando desta vida eu me for. Enquanto isso continuarei a adquirir mais conhecimentos para cada vez mais ter essa liberdade de expressão... sem achismos ou distorções culturais.
Talento é um presente que trazemos, mas pode ser mal aproveitado se não aprofundado com estudos e assim caímos nesse árduo caminho das distorções esperando que os estudiosos e profissionais o admirem apenas por sua inspiração espiritualista.
Todo caldeirão que se mexe solta fumaça, não é mesmo?