Há que se concordar que as culturas ágrafas ainda existentes nos deixam com muitas dúvidas quanto as suas verdadeiras origens. Porém um fato da natureza nos faz caminhar em direção à luz pelo simples fato de nós, seres humanos possuirmos o dom da reflexão e o dom da escolha. São armas poderosíssimas e que, quando interferidas pela emoção, nos levam a caminhos inimagináveis para a felicidade ou sofrimento.
O Flamenco é uma cultura
recente se comparada com várias outras existentes há séculos. Com
sua origem na Andalucia, sul da Espanha, ainda hoje é consagrada sua
exposição ao mundo pelos ciganos; uma das culturas mais adversas quanto sua origem e seus costumes exatamente pela forma matriarcal e
ágrafa como em muitas outras culturas.
Chamar o Flamenco de
cultura é porque se tem a real dimensão de seu propósito dentro da
arte. É uma forma muito singular de expressar as mais profundas e
originárias emoções e que uma amiga filósofa carioca dizia ser o "simples complicado". Ela dizia que só existe uma emoção e dela se
derivam as outras de acordo com as circunstâncias em que a vida
apresenta a cada um de nós.
Amor é isso. Várias são
suas facetas e derivações na condição de vida do homem. Mas a
proposta da matéria aqui é refletir sobre a confusa origem do
Flamenco.
Após anos de muita
observação já se sabe que não dá pra caracterizar como único seu seu surgimento, pois todos os indícios apontam o Flamenco como
resultante de um processo histórico na Andalucia e que envolveu
várias culturas que, de comum, apenas o período em que se
encontraram na Espanha.
Mouros (ou pequenos
árabes que é a tradução para esta palavra), judeus, espanhóis pobres
que migravam de outras regiões para o sul e ciganos que ali se
encontraram durante os 700 anos de conquista árabe pela Península
Ibérica. Um pequeno paralelo acontece neste período com a
descoberta do Brasil, pois enquanto isso acontecia aqui, lá se
resolvia outro fato histórico: a reconquista da cultura católica
com a expulsão dos mouros da Península Ibérica.
Até então apenas
pequenos manifestos aconteciam em isolado por conta da pressão
histórica e que sempre remexe e resulta na arte do povo. Em toda a história
da humanidade o materialismo é motivo de guerras e divisões por
conta do poder gerado pela vaidade e egoísmo do homem. É difícil
crer, mas isso é um ato natural e constante da vida do homem.
Sobre o fato de que os
ciganos expuseram uma forma diferente de arte isto é fato e está
registrado em várias obras que falam de um jeito diferente e quase
profano de mostrar música, canto e dança. (Sobre os ciganos tenho
outras matérias aqui no blog e basta procurar.) Mas a curiosidade me
estimulou a pesquisar por outro caminho: a música andalusa e a influência moura.
Em buscas de fontes
literárias, me arrisquei e comprei o livro “El Flamenco y
la musica andalusí – Argumentos para un encuentro”, escrito
por Cristina Cruces Roldán. Escolhi este livro pelo subtítulo
“argumentos para un encuentro”. Me surpreendi com o currículo da
escritora que é Doutora em Antropologia e Professora Titular de
Antropologia Social na Universidade de Sevilha e uma das pessoas
responsáveis pelo reconhecimento do Flamenco como Patrimônio Oral,
Cultural e Imaterial da Humanidade junto a UNESCO. Ela é
especialista na relação do Flamenco com os manifestos culturais na
Andalucia.
Lendo o livro, encontrei
formas e registros completamente racionais de interferência na
música, nos cantares e na dança na Andalucia, de como os árabes deixaram sua
marca ali. Instrumentos, formas de cantar e fundamentos artísticos.
Inegável o paralelo mostrado por Cristina, pois ela consegue provar
que o Flamenco não é descendente direto da cultura árabe, mas sim
uma cultura que se desenvolve em paralelo por ser sua arte de sistema
matriarcal como a cultura dos ciganos. Toda a forma de cantar e tocar
os instrumentos é muito mais emocional do que técnico. Os
instrumentos ali enraizados pela interferência moura no período em
que Muçulmanos tentavam resistir a força Católica dos espanhóis
que se uniram para expulsá-los dali.
Toda forma de
manifestação que não fosse de clamor católico era proibido e
muitas vezes considerados profanos por não conter este conteúdo.
Pela pressão do momento, a maioria foi expulsa e poucos se fixaram
ali como os próprios mouros e os ciganos que ali chegavam. Ambos
confundidos por serem extrangeiros e de pele escura. Muitas das vezes
estes mouros eram acolhidos pelas comunidades ciganas que já se
fixavam ali, o que gera naturalmente a união pela perseguição.
Nestes anos de reafirmação da religião católica, tudo que
acontecia fora deste contexto era praticado na clandestinidade e no
seio das famílias de migrantes ali já estabelecidos e que se
sujeitaram ao catolicismo.
O livro mostra a evolução
de alguns instrumentos e da forma mais evoluída do laúd,
instrumento árabe de cordas e que se transformaria mais tarde na
famosa guitarra espanhola; para nós, o violão com 6 cordas. Ainda
encontramos um instrumento intermediário que é a bandurria, muito
comum em alguns folclores andaluzes ainda hoje e que foi marcante no
desenvolvimento das famosas zambras, proibidas por terem influência
árabe e por não haver em suas letras nada de origem cristã; ou
seja, se transformou em “profano”. A Zambra merece capítulo à
parte por também ser confundida como uma arte de fusão e de domínio
árabe; uma visão completamente equivocada depois que li o livro do
cantaor cigano granadino Curro Albaicín, que tem um trabalho de
resgate destas artes deste período juntos aos seus amigos e
familiares ciganos em Granada.
Não há como negar que
as formas artísticas na Andalucia sofreram interferências mouras.
Afinal de contas 700 anos mexe com qualquer cultura sim.
O mais interessante foi
reparar que o destino, usando uma das formas ciganas de ver a vida,
levou os ciganos para um lugar onde aconteciam fatos e que em alguma
coisa havia pra eles ali. Pela sua natural capacidade de adaptação
e absorção da cultura por onde passa, os ciganos andaluzes acabaram
por levarem em suas formas artísticas mais um pouco daquilo que
acontecia ali na Andalucia, a influência moura. O processo musical
(instrumentos e cantos) árabes é mais forte no sistema matriarcal,
ou seja, passado de mão em mão, pois não há espaço no papel uma
maneira de registrar a individualidade do espírito artístico e
reproduzi-lo da mesma forma por outras pessoas. Assim também é até
hoje a arte dos ciganos. Então parece que a vida trouxe um presente
aos ciganos: eles acabaram por trazer à tona o que o povo andaluz
necessitava para reclamar sua vida. O Flamenco surge como este grito
ancestral pela vida. Um grito que vem do fundo da alma por sofrer
querendo viver. Uma luta pela descoberta do que conhecemos por amor
pela vida em sua plenitude e suas diversas facetas sentidas pelo
homem. E isso é o que os ciganos fazem desde que conhecemos sua
história: cantar, tocar e dançar a vida.
Gitanos en Granada, final séc. XIX |
Não há como negar então
que, por maiores influências culturais que possa ter o Flamenco, é
ao cigano que devemos honrar seu nascimento e exposição ao mundo.
Se não fosse seu destino incerto no tempo os levar até a Andalucia
nos idos anos de 1490/1500 talvez nunca existisse esta arte.
Calés |
Para resumir então,
Flamenco é a arte do Cigano Espanhol Andaluz. Queiram ou não os
artistas dançarinos e músicos, não há como negar um fato que é
histórico e reconhecido por especialistas, antropólogos,
escritores, compositores e doutores em vários setores da ciência e
da arte no mundo todo. Para dizer mais e provocando curiosidades, a Rumba pra eles é unica lá... Catalã, Gitana ou Flamenca, para os ciganos de lá não há diferenças...
Lamento quem discorde. Eu
consegui preencher uma lacuna que parecia vazia no aprendizado desta
arte tão ciganamente espanhola. Depois de décadas procurando,
consigo construir racionalmente todo e qualquer folclore do cigano
espanhol envolvendo sua dança, sua música e seu canto. Caiu o véu
da ignorância com tudo que aqui se refere a cultura do cigano
espanhol, o calé. (Só pra lembrar que “calé” se refere ao
cigano espanhol, “calão” ao português e “calon” ao cigano
brasileiro com ancestres ibéricos e que recentemente muitos escrevem agora como "kalon" com "k".)
Gitanos del Sacromonte |
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