Dando prosseguimento ao post anterior, segue a outra parte abaixo.
Uma pesquisa de campo
Para
constatar in loco as
ocorrências do culto a Santa Sara no Brasil e os sincretismos
ciganos realizados na Umbanda, escolhemos o templo de Umbanda
denominado Tenda Irmãos do Oriente e o Arpoador, no bairro de
Ipanema , no Rio de Janeiro Eis o resultado de nossas observações:
- Tenda Irmãos do Oriente
O
lugar
Tendo
sabido por uma pessoa conhecida que havia um Templo Irmãos do
Oriente, instituição de Umbanda relevante da linha do Oriente no
bairro Botafogo, apressamo-nos a obter um convite para assistir a uma
das sessões. Fomos informados por essa pessoa que Santa Sara se
manifestava por meio de um médium nesse templo e já fazia parte do seu panteão. Tendo obtido o
convite e chegando no templo no dia e hora pré-determinados, ficamos
surpresos com a organização do estabelecimento, com comodidades
confortáveis, uma cantina, uma livraria de livros espíritas e de
Umbanda, uma secretaria, uma obra social e uma frequência de cerca
de 300 pessoas sem contar os médiuns, os praticantes pertencendo à
classe média e média alta.
Antes
do início do ritual, nós nos informamos sobre o médium que recebe
Santa Sara. Disseram-nos que Santa Sara não se manifestava mais e
que, no seu lugar, havia o Cigano Vladimir, incorporado pelo médium
Ferreira. Nós procuramos o médium Ferreira e nos apresentamos a ele
como pesquisadores e lhe perguntamos se ele incorporava Santa Sara.
Ferreira usava a camiseta de uma empresa de comunicações, calças
jeans e um brinco na orelha esquerda. Ele nos respondeu que não, mas
que ele organizava festas ciganas, com culinária, bebidas e danças
ciganas realizadas por um grupo de Ciganos da cidade de Niterói. Ele
respondeu também que Santa Sara se incorporava em uma médium que
não frequentava mais a casa e que, no início, ele incorporava o
Cigano Pablo, da Bulgária e que, mais tarde, o espírito do Cigano
Vladimir, de origem russa, veio também se incorporar nele, visando
trabalhos de caridade e de ajuda ao próximo em dificuldade. Nós lhe
perguntamos se ele era Cigano e ele respondeu que não, mas que ele
admirava a cultura e os valores ciganos e que ele não pedia dinheiro
pelas consultas com a entidade e nem pelos trabalhos. Declarou também
que quando as Ciganas pediam dinheiro pelas consultas, elas acabavam
perdendo sua mediunidade e, por essa razão, ele não pedia nada.
O
ritual
O
ritual marcado para às 20h30 foi precedido por uma palestra começada
às 19h30, sobre um texto evangélico-cristão escrito por um dos
participantes do painel que presidia a sessão. Depois da palestra,
hinos e cânticos foram cantados pela assistência e, logo após os
hinos, as consultas dos participantes da assembleia com as diferentes
entidades incorporadas começaram.
Nós
nos dirigimos a uma das auxiliares do culto e lhe dissemos que
gostaríamos de falar com o Cigano Vladimir. Após uma breve espera,
fomos conduzidos ao médium incorporado, que usava uma camisa branca.
O Cigano Vladimir, russo, nos falou em espanhol. O melhor seria
dizer em “portunhol”, uma mistura de palavras portuguesas e
palavras pretensamente espanholas. A entidade nos examinou, falando
sem interrupção num português à espanhola, pegando nosso pulso e
nos aplicando passes para a limpeza de energia. A entidade chamava-se
Cigano Vladimir, de origem russa, pensamos que ela deveria conhecer o
romani. Nós nos dirigimos então a ela e dissemos:
_ De duma mange and
amari chibe (Fale-me em nossa língua)
A
entidade ignorou minha pergunta e continuou a me benzer e afastar os
maus espíritos, sempre em “portunhol”. Eu continuei a lhe falar:
_ Tu san rom, de
duma and amari chibe (Você é cigano, fale
na nossa língua).
A
entidade respondeu em espanhol à portuguesa:
_ Eu conosco muchos
idiomas e já vivi en el deserto, já fui beduíno.
Diante
da ignorância do romani manifestada tanto pelo médium quanto pelo
espírito cigano, não pedimos mais nada, limitando-nos a sorrir e a
agradecer pelo trabalho espiritual realizado e saímos do templo, sem
nenhuma outra questão. É preciso fazer notar que nenhum dinheiro
nos foi pedido, nem pela instituição que abriga o ritual, nem pelo
médium que incorporou o espírito.
Dentre
os médiuns que incorporavam entidades ciganas ou dentre as pessoas
que afirmavam serem protegidas por essas entidades, é muito comum
ouvir afirmações como: “minha Cigana”, “tenho uma Cigana que
me acompanha”, “meu Cigano”.
No
nosso ponto de vista, o possuído, na impossibilidade de tornar-se um
Cigano, pode exacerbar sua xenofilia, quando deseja tornar-se
possuidor de alguma coisa que, no fundo, não se deixará jamais
“possuir” que é a figura estereotipada do(a) cigano(a)
transfigurada em entidade. Esta última poderá sempre ser contatada
através dos procedimentos rituais próprios de uma confissão
religiosa ou seita iniciática.
- Arpoador
Santa Sara na gruta Arpoador - RJ |
Em
24 de maio fomos ao Arpoador, onde sabíamos que rituais ciganos
organizados pela Fundação Sara Kali aconteciam em homenagem a Santa
Sara. Lá chegando, vimos se desdobrar diante de nós um espaço
aberto pela Prefeitura do Rio de Janeiro, onde se encontrava a imagem
de Santa Sara Kali próxima de uma gruta, que buscava sugerir a
atmosfera de Saintes-Maries de la Mer, na Camargue.
A
maior parte dos participantes do encontro eram mulheres de meia idade
e alguns jovens. Algumas mulheres, em trajes “ciganos”,
acompanhadas por homens de chapéu e trajados de negro, sentavam-se
diante de tendas com objetos à venda: artesanatos, amuletos,
bijuterias e camisetas com a imagem de Sara Kali. Não longe dali
havia uma mesa pequena com pequenos copos plásticos com vinho para
os participantes. Sobre outra mesinha de plástico havia um cesto com
os lilá (pequenos
prospectos distribuídos nas ruas pelas ciganas pregando suas
virtudes de vidência e quiromancia). Nos lilá,
uma prece ou pedido a Deus estava impressa em texto bilíngue
romani/português e, no verso, o anúncio “Se você quer conhecer
um pouco mais sobre a verdadeira história, os hábitos e a cultura
do Povo Cigano, entre em contato com uma verdadeira Cigana. Mirian
Stanescon coloca-se à sua disposição para conferências, cursos,
workshops, festas, bufês e rituais deste povo milenar”. E-mails e
números de telefones da Fundação Sara Kali constavam para os
contatos. Nesse momento, Mirian Stanescon, cigana kalderashi,
presidente da Fundação Sara Kali, fazia um discurso pedindo que as
bênçãos de Santa Sara caíssem sobre os participantes, proclamando
que, em nome de Jesus Cristo, os presentes seriam numerosos, os
donativos não eram obrigatórios e cada um ajudaria na manutenção
da festa na medida das suas possibilidades.
Depois
do discurso, as músicas ciganas começaram, cantadas não em romani
ou calom, como poderíamos crer, mas em português ou em espanhol. O
cantor de chapéu e vestido de preto, assim como os dançarinos,
diziam-se todos calons. Os participantes acompanhavam a música com
palmas ritmadas, palmas em ostinato percussivo, apoiando-se
unicamente sobre os primeiros tempos das medidas. As batidas de
palmas à contratempoo, tão caras aos verdadeiros ciganos da
Andaluzia estavam completamente ausentes. As melodias eram muitas
vezes acompanhadas pela sequência harmônica Am/G/F/E,
características do flamenco espanhol, mas ausente nas músicas dos
Calons brasileiros. O cantor cantava acompanhado de um karaokê, as
músicas estando previamente gravadas em estúdio, não havia música
ao vivo.
Perto
de nós havia uma jovem morena com uma agenda na mão, que conversava
com um indivíduo com uma camisa quadriculada, mangas longas, um
chapéu e muitos anéis. Ela dizia ter um avô cigano e queria
contatar o povo para reencontrar suas raízes. O homem lhe respondeu
que ele era Calom e organizava festas ciganas típicas. Por educação,
afastamo-nos da conversa nesse momento, prestando atenção nas
reações entusiasmadas do público para o par de dançarinos fazendo
evoluções evidentemente coreografadas. Quando a jovem se afastou
para conversar com as mulheres em trajes ciganos, nós nos
aproximamos do Calom e tivemos a seguinte conversa com ele:
_
Tunsa si calom? (Você é calom?)
_
Como?
_
Tunsa nakera i chibe cali? (você fala a
língua dos calons?)
_ Ah
. bom.
E
ele desapareceu rapidamente da nossa vista, aparentemente apavorado
Os
autores deste ensaio consultaram a bibliografia especializada e
mantiveram correspondência com Ciganos e não Ciganos de
organizações representativas na América latina, Europa e Estados
Unidos, mas não encontraram um comportamento semelhante àquele que
é apresentado neste texto e que seja, quantitativamente
representativo em outros países além do Brasil. Como ressalta muito
justamente o professor Ático Vilas-Boas da Mota2,
as atitudes de xenofilia cigana são raras no continente europeu.
Entrevista com Átila Nunes Neto sobre a relação entre Umbanda e Ciganos3
- Quais são as datas das primeiras manifestações de entidades ciganas na Umbanda?
No
começo, os ciganos eram “confundidos” (sic) com os Exus,
então, à medida que o “povo das ruas” começou a se manifestar
nos templos, os ciganos foram notados também. Os marinheiros, os
boêmios e os ciganos eram algumas das entidades manifestadas. Creio
que as manifestações começaram nos decênios 1920 ou 1930.
Atualmente, há templos que fazem giras
específicas para os Ciganos ou os Povos do Oriente.
- Existe uma documentação confiável que possamos consultar a esse respeito?
Se
eu fosse fazer uma pesquisa sobre esse assunto, começaria pelos
antigos pontos
gravados, eles são a melhor forma de registro. Há músicas muito
antigas que podem comprovar essa ideia. Já que o material literário
é raro, os pontos
gravados são a melhor fonte, há também as orações para os
ciganos.
Notas
- Segundo o espiritismo, pessoa capaz de se comunicar com os espíritos (Dic Houaiss, 2009)
- Prof. Ático Vilas-Boas da Mota foi Presidente da Comissão Nacional do Folclore (IBECC – UNESCO 1992-1999) e autor, dentre outros, de Ciganos – Antologia de Ensaios – Thesaurus, 2004 e de artigos sobre a etnia
- id
Todas as fotos e ilustrações foram encontradas na internet.
Bibliografia
Ahmed,
Almir, Depoimento Pessoal a Cristina da Costa
Pereira, arquivo pessoal de Cristina C.
Pereira, 2011
Beniste,
José, Depoimento Pessoal a Cristina da Costa
Pereira, arquivo pessoal de Cristina C.
Pereira, 2011
Houaiss,
Antonio, Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa, 1a.
Edição, Editora Objetiva, 2009
Levinin,
Daniel L, A música no seu cérebro, uma
obsessão humana, Rio de Janeiro, Editora
Civilização Brasileira, 2010
Moreira
Leite, Dante, O caráter nacional brasileiro:
história de uma ideologia, São Paulo,
Editora UNESP, 2002
Mota,
Ático Vilas-Boas da, Depoimento Pessoal a
Cristina da Costa Pereira, arquivo pessoal de
Cristina C. Pereira, 2011
Nunes
Filho, Átila, Depoimento Pessoal a Cristina
da Costa Pereira, arquivo pessoal de Cristina
C. Pereira, 2011
Salo,
Matt T, in Encyclopedia of Canada’s People by Paul R. Magocsi,
Toronto, University of Toronto Press, Scolarly Publishing Division,
1999
Trigg,
Elwood B, Gypsy
Demons and Divinities: The Magic and Religion of the Gypsies, Citadel
Press, 1970
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