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quarta-feira, 7 de maio de 2025

Carmen Purísssima 28 anos depois

Em meados dos anos 90 eu tive uma depressão por decepção profissional. Precisava ganhar dinheiro para pagar dívidas contraídas haja vista ter me afastado do mercado de dança que era a única coisa que eu sabia fazer naquela época para ganhar dinheiro. Adentrei o universo underground e vi outro mundo artístico, o transformista que hoje recebe o pomposo e evoluído nome de "dragqueen" onde você literalmente se transforma num personagem de forma artística.

Numa dessas noites adentrei o antigo Cabaré Bohemio na Lapa onde uma das mais famosas drags da época reinava.

 Norberto Chucri David (in memoriam) era professor de história durante o dia e Laura de Vison de noite. Foi "ela" quem me "amadrinhou", deu o nome artístico e me ensinou como trilhar neste denso universo de artistas transformistas da época onde reinavam outras famosas como Meime dos Brilhos, Lorna Washington e o grande comediante Rose Bombom, mestre da famosa e atual Suzy Brasil que vi nascer nessa época.
 

Nascia sob os cuidados da tia Laura, como a chamei por quase dois anos, a Carmen Purísssima, com três "s" porque ela alegava ser muito ingênuo e não queria que eu sofresse os dramas deste lado artístico da época. Sempre me protegeu e sempre me aconselhou em como me comportar quando estivesse fora de sua guarda que era fora daquela boite. Andei por inúmeras casas noturnas do Rio de Janeiro e Niterói fazendo o que sabia: dançar flamenco, porém na pele da Carmen Purísssima. Raramente dublava e quando o fazia performava fazendo a Lola Flores ou mesmo a Lole Montoya; ambas famosas cantoras de flamenco que gosto muito.

Não cheguei a dois anos no mercado porque não aguentei o peso e os dramas da época conforme tia Laura me mostrou. Só queria ganhar dinheiro. Confesso que ganhei, e muito, para pagar as minhas dívidas da época. E sobrou um pouco...


Enfrentei o retorno à minha realidade e acabei com a espanhola. Fiz uma fogueira na casa de quem tirou essas fotos  e queimei tudo como num grande exorcismo! "Carmen voltou para sua terra natal e não sabe quando voltará." Esse era o discurso que dava quando perguntavam por ela.

Em 2024 recebo um chamado por uma das mídias sociais de um ex-aluno, Leonardo Simões é hoje um grande diretor teatral de Niterói, que me pediu indicar artistas para fazerem pequenas interferências de dança na peça "A Casa de Bernarda Alba" a estrear em dezembro de 2024 no teatro da Uff onde dancei muitas vezes com alguns shows flamencos e participações com alunos das academias que ministrei aulas. Ousadia minha, mostrei a ele a imediata inspiração que tive com um ídolo que adoro e é uma de minhas inspirações para o que faço hoje com o Flamenco. Manuel Liñan... esse consagrado artista flamenco montou um musical chamado "Viva!!" onde todo o elenco eram homens travestidos de bailaoras sem caricaturas para uma grande homenagem a essas mulheres dançarinas de Flamenco.



Eu mesmo propus o desafio e acabei fazendo os preâmbulos e a cena final da peça. Foi como trazer à tona a Carmen Purísssima mais madura... deu certo e foi o maior sucesso!
 Devo essa credibilidade e oportunidade ao Leonardo Simões,  diretor teatral.








E agora em julho de 2025 estaremos em cartaz no Theatro Municipal de Niterói reprisando a peça.








Mais aprendizado pessoal


Em toda filosofia espiritualista ou próxima disso que queira explicar a vida, seja ela auto denominante religião ou apenas uma ciência, se fala dos atributos do espírito onde o caráter, o bom senso e demais aspectos possuem valores diferenciados segundo seus princípios básicos. Nada posso criticar sobre essas condições de aprendizado porque cada uma delas possuem suas razões e fundamentos para se justificarem. Com o tempo aprendi que devo respeitar estas diferenças e compreendê-las segundo a forma pessoal o que elas entendem destes atributos, mesmo que eu pessoalmente não aceite algumas por apenas discordar ou já ter vivenciado e descoberto que não foi daquela forma minha vivência conforme explicado.

 Aprendemos seus conceitos e até supomos quais seriam as sensações se não passarmos por alguma delas. A arte flamenca ensina passar por emoções "emprestadas", aquelas que não vivemos mas nos solidarizamos a elas e ficamos empáticos.

Estes dias passados vivi a misericórdia. É um ato digno de total desprendimento, empatia e libertação por amor. Mas confesso que dói demais! Aprendi e descobri muito antes disso o valor que a vida tem em todos os aspectos e de como tudo e todos estão conectados as diversas camadas da espiritualidade.

Misericórdia dói mais que perder alguém que se ama por meios naturais.

Eutanásia é, segundo a explicação mais simples, a interrupção da vida por outrem para aquele que não tem mais perspectivas de recuperação de sua enfermidade e poder desfrutar, ainda que com poucas possibilidades, da vida como um todo dentro das limitações deste momento. Literalmente é vegetar por ter seus pulsos cardíacos e/ou mentais obrigados a funcionar por forma química ou mecânica sem proveito algum para absolutamente nada. Há filosofias espiritualistas que creem na necessidade de resgate pela dor deste momento que; ainda que de forma muito dura, faz até sentido pra quem pensa, concorda e age assim quando se trata de seres humanos. Espero não passar por isso; até porque nossa legislação considera isso um crime.


Eu vivi isso com um animal. Coragem foi um pinscher que resgatei da Suipa do RJ para sanar a depressão de outro pet que tive, a Lola, a quem surgiu em minha vida para me ajudar a me recuperar da minha depressão. Deu certo em todos os casos! Lola se foi pelo seu aspecto idoso e fragilizado. Mas Coragem foi de outra forma.

Pelo caráter desconhecido de seus genitores, quero dizer que desconhecia por ser um pet abandonado,  ele herdou uma artrose que atacou seus quadris, uma vesícula que eventualmente se manifestava deficiente, crises convulsivas de largo espaçamento e um coração fisicamente fragilizado. Sua avançada idade intensificou a artrose e trouxe a cegueira quase total, deficiência auditiva e dentes caindo pelos tártaros não tratados. Como ele foi forçado a tomar muitas medicações pela boca e eventualmente entrava em convulsão, eu não consegui ao longo da vida fazer o devido tratamento caseiro e muitos menos com especialista haja vista que até o próprio e natural nervosismo de estar com estranho (veterinário) poderia desencadear outra convulsão. Durante toda sua vida consegui esse controle com o uso de um remédio fitoterápico aplicado quando suas convulsões surgiam quase do nada! Mas infelizmente não era pra ser usado antes de uma crise porque ela nunca avisava quando viria. Com isso, alguns de seus dentes inflamaram. Um canino caiu num espirro e o tenho comigo como relicário. Sua taxa de leucócitos estava muito acima do que poderia suportar um animal daquele porte, possuía um pouco de anemia e sua taxa de uréia não estava tão alta, mas aumentava a gravidade de tudo por virar um tóxico em sua corrente sanguínea alterando o hálito para pior e misturado com o odor da infecção, seu cérebro perdia as conexões trazendo uma demência acentuada pela idade avançada dele. Já não se alimentava há 4 dias e água só com muito custo por insistência minha, ou seja, visível quadro de desidratação e desnutrição. Para não deixar em branco, Coragem tinha dieta orgânica controlada e feita por mim. Enquanto conseguia, comia livremente até 4 vezes ao dia. Apenas chorava pedindo ou em caso de minha presença me encaminhava direto para seu pratinho indicando com a cabeça como se dissesse "quero comer". Algo que nunca tinha tinha visto... Fui seus pés por um bom tempo.

Seu quadro de saúde foi piorando com o tempo conforme dá pra perceber no parágrafo acima e vivi 10 dias intensos de total atenção a ele e com quase 2 horas de sono interrompidos por dia neste ciclo. Também não reclamo disso e nem do esgotamento físico que isso me trouxe porque isso é questão de tratamento adequado para me recuperar. Mas era o mínimo que podia fazer por ele como amor e agradecimento e companheirismo por seus quase 15 anos comigo.

Trago aqui o relato dessa minha dificuldade de digerir melhor o que tive que escolher por ele passando por cima de alguns valores que tinha. Sempre consoante aos aconselhamentos, explicações  e esclarecimentos precisei pensar na vida dele, seu futuro com tratamentos e, principalmente, a qualidade do pouco de vida que poderia ter e desfrutar pela frente após isso.

Escolhi a eutanásia de forma consciente pensando nele e não em mim. Foi tudo muito tranquilo e apoiado pela minha irmã e surpreendentemente com o maior apoio de todos, a Matilda. Outra pet mais nova e companheira do Coragem nestes anos que estiveram juntos. Matilda estava colada comigo durante o processo.

Matilda ao meu lado e eu com Coragem no colo minutos antes do processo. Ela ficou até o final. Desconhecia deste registro até agora há pouco.

Inúmeras vezes precisei ser as pernas e as forças do Coragem para atividades básicas da vida. Inúmeras vezes estive com ele em meu colo e mesmo cego a olhar com os olhos da alma. Era um poço de ternura esses momentos nossos. Quando analisei as possibilidades escolhi a eutanásia. Passei a noite de domingo para segunda com ele no meu colo. Chorei demais, questionava a mim mesmo o quão justo, certo e honesto estava sendo, se era essa a melhor saída, se eu tinha o direito, o dever e/ou a obrigação de ir por esse caminho e principalmente me senti extremamente mau quando pensei em prolongar sua vida. Isso me remeteu a um ato muito egoísta querendo apenas ele mais tempo vivo do meu lado. A prioridade era ele o tempo todo! Imediatamente cortei esse egoísmo e me sobrou a eutanásia.

Misericórdia... literalmente eu senti o que é esse ato. Coragem se foi nessa segunda dia 05 de maio e foi cremado. Não tenho problemas com a morte dos queridos, sinto normalmente as emoções e sei que um dia esse luto passa e sigo a vida. Me dói intensamente pedir pra abreviar a vida dele. DELE! Entendo bem o que seria o futuro caso seguisse tratamento e etc.

Mas ainda estou digerindo isso... essa dor da misericórdia... não desejo isso para ninguém!

Coragem não foi minha primeira e nem a segunda experiência com partida de pets. De qualquer forma eram vidas e tiveram seus valores...

Misericórdia dói.

E muito!

Luto agora pra transformar essa dor em doces e deliciosas saudades que Coragem trouxe em sua existência. Me mostrou de forma mais intensa o poder da vida, a impotência humana e a importância de todos os seres vivos, Uma profunda lição que estou tomando e que já foi aumentada pela minha natural luta e sobrevida após mais de 30 anos conviver com o HIV e ter tido, ainda que por alguns minutos, uma menina com meses de nascida em meu colo, soronegativa de pais soropositivos. Ali a vida gritou de novo pra mim.

Coragem me fez ver a vida por outro lado e intensificou o valor dela através dessa liberdade por amor pela misericórdia.

Dói... mas em breve poderei explanar e ensinar a outros o que é essa sensação angustiante e aflitiva no início mas que tende a se resolver no alívio dele e no meu amor desprendido e liberto.

Dói, mas vai passar...

Coragem está com Lola...