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quinta-feira, 16 de julho de 2015

Relatos e Fatos... Falsa Identidade Cigana - parte II

Dando prosseguimento ao post anterior, segue a outra parte abaixo.

Uma pesquisa de campo

Para constatar in loco as ocorrências do culto a Santa Sara no Brasil e os sincretismos ciganos realizados na Umbanda, escolhemos o templo de Umbanda denominado Tenda Irmãos do Oriente e o Arpoador, no bairro de Ipanema , no Rio de Janeiro Eis o resultado de nossas observações:

  1. Tenda Irmãos do Oriente
O lugar
Tendo sabido por uma pessoa conhecida que havia um Templo Irmãos do Oriente, instituição de Umbanda relevante da linha do Oriente no bairro Botafogo, apressamo-nos a obter um convite para assistir a uma das sessões. Fomos informados por essa pessoa que Santa Sara se manifestava por meio de um médium nesse templo e já fazia parte do seu panteão. Tendo obtido o convite e chegando no templo no dia e hora pré-determinados, ficamos surpresos com a organização do estabelecimento, com comodidades confortáveis, uma cantina, uma livraria de livros espíritas e de Umbanda, uma secretaria, uma obra social e uma frequência de cerca de 300 pessoas sem contar os médiuns, os praticantes pertencendo à classe média e média alta.

Antes do início do ritual, nós nos informamos sobre o médium que recebe Santa Sara. Disseram-nos que Santa Sara não se manifestava mais e que, no seu lugar, havia o Cigano Vladimir, incorporado pelo médium Ferreira. Nós procuramos o médium Ferreira e nos apresentamos a ele como pesquisadores e lhe perguntamos se ele incorporava Santa Sara. Ferreira usava a camiseta de uma empresa de comunicações, calças jeans e um brinco na orelha esquerda. Ele nos respondeu que não, mas que ele organizava festas ciganas, com culinária, bebidas e danças ciganas realizadas por um grupo de Ciganos da cidade de Niterói. Ele respondeu também que Santa Sara se incorporava em uma médium que não frequentava mais a casa e que, no início, ele incorporava o Cigano Pablo, da Bulgária e que, mais tarde, o espírito do Cigano Vladimir, de origem russa, veio também se incorporar nele, visando trabalhos de caridade e de ajuda ao próximo em dificuldade. Nós lhe perguntamos se ele era Cigano e ele respondeu que não, mas que ele admirava a cultura e os valores ciganos e que ele não pedia dinheiro pelas consultas com a entidade e nem pelos trabalhos. Declarou também que quando as Ciganas pediam dinheiro pelas consultas, elas acabavam perdendo sua mediunidade e, por essa razão, ele não pedia nada.

O ritual
O ritual marcado para às 20h30 foi precedido por uma palestra começada às 19h30, sobre um texto evangélico-cristão escrito por um dos participantes do painel que presidia a sessão. Depois da palestra, hinos e cânticos foram cantados pela assistência e, logo após os hinos, as consultas dos participantes da assembleia com as diferentes entidades incorporadas começaram.

Nós nos dirigimos a uma das auxiliares do culto e lhe dissemos que gostaríamos de falar com o Cigano Vladimir. Após uma breve espera, fomos conduzidos ao médium incorporado, que usava uma camisa branca. O Cigano Vladimir, russo, nos falou em espanhol. O melhor seria dizer em “portunhol”, uma mistura de palavras portuguesas e palavras pretensamente espanholas. A entidade nos examinou, falando sem interrupção num português à espanhola, pegando nosso pulso e nos aplicando passes para a limpeza de energia. A entidade chamava-se Cigano Vladimir, de origem russa, pensamos que ela deveria conhecer o romani. Nós nos dirigimos então a ela e dissemos:

     _ De duma mange and amari chibe (Fale-me em nossa língua)

A entidade ignorou minha pergunta e continuou a me benzer e afastar os maus espíritos, sempre em “portunhol”. Eu continuei a lhe falar:
     _ Tu san rom, de duma and amari chibe (Você é cigano, fale na nossa língua).
A entidade respondeu em espanhol à portuguesa:
     _ Eu conosco muchos idiomas e já vivi en el deserto, já fui beduíno.

Diante da ignorância do romani manifestada tanto pelo médium quanto pelo espírito cigano, não pedimos mais nada, limitando-nos a sorrir e a agradecer pelo trabalho espiritual realizado e saímos do templo, sem nenhuma outra questão. É preciso fazer notar que nenhum dinheiro nos foi pedido, nem pela instituição que abriga o ritual, nem pelo médium que incorporou o espírito.

Dentre os médiuns que incorporavam entidades ciganas ou dentre as pessoas que afirmavam serem protegidas por essas entidades, é muito comum ouvir afirmações como: “minha Cigana”, “tenho uma Cigana que me acompanha”, “meu Cigano”.

No nosso ponto de vista, o possuído, na impossibilidade de tornar-se um Cigano, pode exacerbar sua xenofilia, quando deseja tornar-se possuidor de alguma coisa que, no fundo, não se deixará jamais “possuir” que é a figura estereotipada do(a) cigano(a) transfigurada em entidade. Esta última poderá sempre ser contatada através dos procedimentos rituais próprios de uma confissão religiosa ou seita iniciática.

  1. Arpoador

Santa Sara na gruta
Arpoador - RJ
Em 24 de maio fomos ao Arpoador, onde sabíamos que rituais ciganos organizados pela Fundação Sara Kali aconteciam em homenagem a Santa Sara. Lá chegando, vimos se desdobrar diante de nós um espaço aberto pela Prefeitura do Rio de Janeiro, onde se encontrava a imagem de Santa Sara Kali próxima de uma gruta, que buscava sugerir a atmosfera de Saintes-Maries de la Mer, na Camargue.

A maior parte dos participantes do encontro eram mulheres de meia idade e alguns jovens. Algumas mulheres, em trajes “ciganos”, acompanhadas por homens de chapéu e trajados de negro, sentavam-se diante de tendas com objetos à venda: artesanatos, amuletos, bijuterias e camisetas com a imagem de Sara Kali. Não longe dali havia uma mesa pequena com pequenos copos plásticos com vinho para os participantes. Sobre outra mesinha de plástico havia um cesto com os lilá (pequenos prospectos distribuídos nas ruas pelas ciganas pregando suas virtudes de vidência e quiromancia). Nos lilá, uma prece ou pedido a Deus estava impressa em texto bilíngue romani/português e, no verso, o anúncio “Se você quer conhecer um pouco mais sobre a verdadeira história, os hábitos e a cultura do Povo Cigano, entre em contato com uma verdadeira Cigana. Mirian Stanescon coloca-se à sua disposição para conferências, cursos, workshops, festas, bufês e rituais deste povo milenar”. E-mails e números de telefones da Fundação Sara Kali constavam para os contatos. Nesse momento, Mirian Stanescon, cigana kalderashi, presidente da Fundação Sara Kali, fazia um discurso pedindo que as bênçãos de Santa Sara caíssem sobre os participantes, proclamando que, em nome de Jesus Cristo, os presentes seriam numerosos, os donativos não eram obrigatórios e cada um ajudaria na manutenção da festa na medida das suas possibilidades.

Depois do discurso, as músicas ciganas começaram, cantadas não em romani ou calom, como poderíamos crer, mas em português ou em espanhol. O cantor de chapéu e vestido de preto, assim como os dançarinos, diziam-se todos calons. Os participantes acompanhavam a música com palmas ritmadas, palmas em ostinato percussivo, apoiando-se unicamente sobre os primeiros tempos das medidas. As batidas de palmas à contratempoo, tão caras aos verdadeiros ciganos da Andaluzia estavam completamente ausentes. As melodias eram muitas vezes acompanhadas pela sequência harmônica Am/G/F/E, características do flamenco espanhol, mas ausente nas músicas dos Calons brasileiros. O cantor cantava acompanhado de um karaokê, as músicas estando previamente gravadas em estúdio, não havia música ao vivo.

Perto de nós havia uma jovem morena com uma agenda na mão, que conversava com um indivíduo com uma camisa quadriculada, mangas longas, um chapéu e muitos anéis. Ela dizia ter um avô cigano e queria contatar o povo para reencontrar suas raízes. O homem lhe respondeu que ele era Calom e organizava festas ciganas típicas. Por educação, afastamo-nos da conversa nesse momento, prestando atenção nas reações entusiasmadas do público para o par de dançarinos fazendo evoluções evidentemente coreografadas. Quando a jovem se afastou para conversar com as mulheres em trajes ciganos, nós nos aproximamos do Calom e tivemos a seguinte conversa com ele:
_ Tunsa si calom? (Você é calom?)
_ Como?
_ Tunsa nakera i chibe cali? (você fala a língua dos calons?)
_ Ah . bom.
E ele desapareceu rapidamente da nossa vista, aparentemente apavorado


Os autores deste ensaio consultaram a bibliografia especializada e mantiveram correspondência com Ciganos e não Ciganos de organizações representativas na América latina, Europa e Estados Unidos, mas não encontraram um comportamento semelhante àquele que é apresentado neste texto e que seja, quantitativamente representativo em outros países além do Brasil. Como ressalta muito justamente o professor Ático Vilas-Boas da Mota2, as atitudes de xenofilia cigana são raras no continente europeu.

Entrevista com Átila Nunes Neto sobre a relação entre Umbanda e Ciganos3

  1. Quais são as datas das primeiras manifestações de entidades ciganas na Umbanda?
No começo, os ciganos eram “confundidos” (sic) com os Exus, então, à medida que o “povo das ruas” começou a se manifestar nos templos, os ciganos foram notados também. Os marinheiros, os boêmios e os ciganos eram algumas das entidades manifestadas. Creio que as manifestações começaram nos decênios 1920 ou 1930. Atualmente, há templos que fazem giras específicas para os Ciganos ou os Povos do Oriente.

  1. Existe uma documentação confiável que possamos consultar a esse respeito?
Se eu fosse fazer uma pesquisa sobre esse assunto, começaria pelos antigos pontos gravados, eles são a melhor forma de registro. Há músicas muito antigas que podem comprovar essa ideia. Já que o material literário é raro, os pontos gravados são a melhor fonte, há também as orações para os ciganos.

Notas

  1. Segundo o espiritismo, pessoa capaz de se comunicar com os espíritos (Dic Houaiss, 2009)
  2. Prof. Ático Vilas-Boas da Mota foi Presidente da Comissão Nacional do Folclore (IBECC – UNESCO 1992-1999) e autor, dentre outros, de Ciganos – Antologia de Ensaios – Thesaurus, 2004 e de artigos sobre a etnia
  3. id

   Todas as fotos e ilustrações foram encontradas na internet.

Bibliografia


Ahmed, Almir, Depoimento Pessoal a Cristina da Costa Pereira, arquivo pessoal de Cristina C. Pereira, 2011

Beniste, José, Depoimento Pessoal a Cristina da Costa Pereira, arquivo pessoal de Cristina C. Pereira, 2011

Houaiss, Antonio, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 1a. Edição, Editora Objetiva, 2009

Levinin, Daniel L, A música no seu cérebro, uma obsessão humana, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2010

Moreira Leite, Dante, O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia, São Paulo, Editora UNESP, 2002

Mota, Ático Vilas-Boas da, Depoimento Pessoal a Cristina da Costa Pereira, arquivo pessoal de Cristina C. Pereira, 2011

Nunes Filho, Átila, Depoimento Pessoal a Cristina da Costa Pereira, arquivo pessoal de Cristina C. Pereira, 2011

Salo, Matt T, in Encyclopedia of Canada’s People by Paul R. Magocsi, Toronto, University of Toronto Press, Scolarly Publishing Division, 1999

Trigg, Elwood B, Gypsy Demons and Divinities: The Magic and Religion of the Gypsies, Citadel Press, 1970

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