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terça-feira, 29 de julho de 2014

Mundos Paralelos...


Há que se concordar que as culturas ágrafas ainda existentes nos deixam com muitas dúvidas quanto as suas verdadeiras origens. Porém um fato da natureza nos faz caminhar em direção à luz pelo simples fato de nós, seres humanos possuirmos o dom da reflexão e o dom da escolha. São armas poderosíssimas e que, quando interferidas pela emoção, nos levam a caminhos inimagináveis para a felicidade ou sofrimento.

O Flamenco é uma cultura recente se comparada com várias outras existentes há séculos. Com sua origem na Andalucia, sul da Espanha, ainda hoje é consagrada sua exposição ao mundo pelos ciganos; uma das culturas mais adversas quanto sua origem e seus costumes exatamente pela forma matriarcal e ágrafa como em muitas outras culturas.

Chamar o Flamenco de cultura é porque se tem a real dimensão de seu propósito dentro da arte. É uma forma muito singular de expressar as mais profundas e originárias emoções e que uma amiga filósofa carioca dizia ser o "simples complicado". Ela dizia que só existe uma emoção e dela se derivam as outras de acordo com as circunstâncias em que a vida apresenta a cada um de nós.

Amor é isso. Várias são suas facetas e derivações na condição de vida do homem. Mas a proposta da matéria aqui é refletir sobre a confusa origem do Flamenco.

Após anos de muita observação já se sabe que não dá pra caracterizar como único seu seu surgimento, pois todos os indícios apontam o Flamenco como resultante de um processo histórico na Andalucia e que envolveu várias culturas que, de comum, apenas o período em que se encontraram na Espanha.

Mouros (ou pequenos árabes que é a tradução para esta palavra), judeus, espanhóis pobres que migravam de outras regiões para o sul e ciganos que ali se encontraram durante os 700 anos de conquista árabe pela Península Ibérica. Um pequeno paralelo acontece neste período com a descoberta do Brasil, pois enquanto isso acontecia aqui, lá se resolvia outro fato histórico: a reconquista da cultura católica com a expulsão dos mouros da Península Ibérica.

Até então apenas pequenos manifestos aconteciam em isolado por conta da pressão histórica e que sempre remexe e resulta na arte do povo. Em toda a história da humanidade o materialismo é motivo de guerras e divisões por conta do poder gerado pela vaidade e egoísmo do homem. É difícil crer, mas isso é um ato natural e constante da vida do homem.

Sobre o fato de que os ciganos expuseram uma forma diferente de arte isto é fato e está registrado em várias obras que falam de um jeito diferente e quase profano de mostrar música, canto e dança. (Sobre os ciganos tenho outras matérias aqui no blog e basta procurar.) Mas a curiosidade me estimulou a pesquisar por outro caminho: a música andalusa e a influência moura.

Em buscas de fontes literárias, me arrisquei e comprei o livro “El Flamenco y la musica andalusí – Argumentos para un encuentro”, escrito por Cristina Cruces Roldán. Escolhi este livro pelo subtítulo “argumentos para un encuentro”. Me surpreendi com o currículo da escritora que é Doutora em Antropologia e Professora Titular de Antropologia Social na Universidade de Sevilha e uma das pessoas responsáveis pelo reconhecimento do Flamenco como Patrimônio Oral, Cultural e Imaterial da Humanidade junto a UNESCO. Ela é especialista na relação do Flamenco com os manifestos culturais na Andalucia.

Lendo o livro, encontrei formas e registros completamente racionais de interferência na música, nos cantares e na dança na Andalucia, de como os árabes deixaram sua marca ali. Instrumentos, formas de cantar e fundamentos artísticos. Inegável o paralelo mostrado por Cristina, pois ela consegue provar que o Flamenco não é descendente direto da cultura árabe, mas sim uma cultura que se desenvolve em paralelo por ser sua arte de sistema matriarcal como a cultura dos ciganos. Toda a forma de cantar e tocar os instrumentos é muito mais emocional do que técnico. Os instrumentos ali enraizados pela interferência moura no período em que Muçulmanos tentavam resistir a força Católica dos espanhóis que se uniram para expulsá-los dali.

Toda forma de manifestação que não fosse de clamor católico era proibido e muitas vezes considerados profanos por não conter este conteúdo. Pela pressão do momento, a maioria foi expulsa e poucos se fixaram ali como os próprios mouros e os ciganos que ali chegavam. Ambos confundidos por serem extrangeiros e de pele escura. Muitas das vezes estes mouros eram acolhidos pelas comunidades ciganas que já se fixavam ali, o que gera naturalmente a união pela perseguição. Nestes anos de reafirmação da religião católica, tudo que acontecia fora deste contexto era praticado na clandestinidade e no seio das famílias de migrantes ali já estabelecidos e que se sujeitaram ao catolicismo.

O livro mostra a evolução de alguns instrumentos e da forma mais evoluída do laúd, instrumento árabe de cordas e que se transformaria mais tarde na famosa guitarra espanhola; para nós, o violão com 6 cordas. Ainda encontramos um instrumento intermediário que é a bandurria, muito comum em alguns folclores andaluzes ainda hoje e que foi marcante no desenvolvimento das famosas zambras, proibidas por terem influência árabe e por não haver em suas letras nada de origem cristã; ou seja, se transformou em “profano”. A Zambra merece capítulo à parte por também ser confundida como uma arte de fusão e de domínio árabe; uma visão completamente equivocada depois que li o livro do cantaor cigano granadino Curro Albaicín, que tem um trabalho de resgate destas artes deste período juntos aos seus amigos e familiares ciganos em Granada.
bandurria

Não há como negar que as formas artísticas na Andalucia sofreram interferências mouras. Afinal de contas 700 anos mexe com qualquer cultura sim.

O mais interessante foi reparar que o destino, usando uma das formas ciganas de ver a vida, levou os ciganos para um lugar onde aconteciam fatos e que em alguma coisa havia pra eles ali. Pela sua natural capacidade de adaptação e absorção da cultura por onde passa, os ciganos andaluzes acabaram por levarem em suas formas artísticas mais um pouco daquilo que acontecia ali na Andalucia, a influência moura. O processo musical (instrumentos e cantos) árabes é mais forte no sistema matriarcal, ou seja, passado de mão em mão, pois não há espaço no papel uma maneira de registrar a individualidade do espírito artístico e reproduzi-lo da mesma forma por outras pessoas. Assim também é até hoje a arte dos ciganos. Então parece que a vida trouxe um presente aos ciganos: eles acabaram por trazer à tona o que o povo andaluz necessitava para reclamar sua vida. O Flamenco surge como este grito ancestral pela vida. Um grito que vem do fundo da alma por sofrer querendo viver. Uma luta pela descoberta do que conhecemos por amor pela vida em sua plenitude e suas diversas facetas sentidas pelo homem. E isso é o que os ciganos fazem desde que conhecemos sua história: cantar, tocar e dançar a vida.
Gitanos en Granada, final séc. XIX

Não há como negar então que, por maiores influências culturais que possa ter o Flamenco, é ao cigano que devemos honrar seu nascimento e exposição ao mundo. Se não fosse seu destino incerto no tempo os levar até a Andalucia nos idos anos de 1490/1500 talvez nunca existisse esta arte.

Calés
Hoje nos valemos da máxima de sua cultura que exalta a vida de uma forma tão singular que esquecemos que eles são como nós, seres humanos que sentem a vida. Apenas a vemos de forma diferente. Porém devemos lembrar que todos nós, ciganos ou não, somos munidos da composição básica do ser humano que é a força e a matéria. Sentimos as mesmas coisas porém vistas de forma diferente. O Amor é a única emoção que nos faz diferente de tudo e a nossa capacidade de refletir e escolher nos leva a construir histórias diferentes. Talvez por esta razão que o Flamenco deixou de ser exclusivamente andaluz e cigano para ser do mundo todo. Mudamos as culturas, mas as emoções são as mesmas... é que o Flamenco é individual e não coletivo como a maioria dos folclores dos povos.

Para resumir então, Flamenco é a arte do Cigano Espanhol Andaluz. Queiram ou não os artistas dançarinos e músicos, não há como negar um fato que é histórico e reconhecido por especialistas, antropólogos, escritores, compositores e doutores em vários setores da ciência e da arte no mundo todo. Para dizer mais e provocando curiosidades, a Rumba pra eles é unica lá... Catalã, Gitana ou Flamenca, para os ciganos de lá não há diferenças...

Lamento quem discorde. Eu consegui preencher uma lacuna que parecia vazia no aprendizado desta arte tão ciganamente espanhola. Depois de décadas procurando, consigo construir racionalmente todo e qualquer folclore do cigano espanhol envolvendo sua dança, sua música e seu canto. Caiu o véu da ignorância com tudo que aqui se refere a cultura do cigano espanhol, o calé. (Só pra lembrar que “calé” se refere ao cigano espanhol, “calão” ao português e “calon” ao cigano brasileiro com ancestres ibéricos e que recentemente muitos escrevem agora como "kalon" com "k".)

Gitanos del Sacromonte
Se eu consegui, qualquer um consegue. E isto independe dos anos em que se está ligado ao Flamenco. Devemos agradecer ao avanço tecnológico da atual realidade e a capacidade de reflexão que possuímos, mas unida a honestidade e a transparência dos fatos.

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